domingo, 17 de março de 2013

BIG BROTHER - DE GEORGE ORWELL A NOSSOS DIAS

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1984 - Nineteen Eighty-four.  (drama, romance, ficção científica); Elenco: John Hurt, Richard Burton, Suzana Hamilton; Diretor: Michael Radford. 1984. 113 Min.

Nota: O texto a seguir desvenda o enredo.

Antes que o Big Brother Brasil XIII acabe e a nossa conversa perca o contexto, vamos devanear com a expressão criada por George Orwell, num chão de política, ideologia,  sutilidades e  fazer associações  supostamente pertinentes sobre o Big Brother do filme 1984, o Big Brother "real" do nosso cotidiano e o Big Brother reality show, um espetáculo à parte, uma ode à perda da privacidade em forma de pastelão. 
Eric Arthur Blair, nome real de George Orwell, escreveu em 1948 um livro entitulado 1984, uma obra-prima segundo Aldous Huxley  (link). Nela Orwell faz ilações sobre as possibilidades do uso ideológico/político da teletela, a televisão, criada na década de vinte  e "popularizada" na Europa e na América na década de 30. Tecer conecções dessa obra estupenda com o que temos de uso ideológico e político da televisão hoje e com o "boom" de vigilância que vivemos, sob a premissa de que é para nossa segurança, é uma tentação e tanto.
A alcunha Big Brother - Grande irmão - foi criada por Orwell e é  usada tanto no livro quanto no filme. O Big Brother (Bob Flag)  é o grande líder e mentor de uma revolução às avessas. São os grandes olhos que tudo vê e a grande sabedoria que deve ser amada. O responsável pela criação de um novo idioma, a novilíngua/novafala, que simplificaria e reduziria tudo, da ortografia à semântica, diminuindo o repertório vocabular e  as possibilidades de expressão de subjetividades. Qualquer semelhança com o Alpha 60 - Alphaville, 1965  (link)  de Godard pode não ser mera coincidência.
 O dicionário está presente como registro das reduções  de expressividade mas o ataque de cerceamento de liberdade do Big Brother é mais profundo  e mais intenso do que na obra de Godard e não abarca somente as relações com os outros mas a relação que o indivíduo tem consigo mesmo. A linguagem vem da garganta e não do pensamento, dizem os preceitos reguladores da ideologia do grande irmão.
A normatização da vida em sociedade estabelece uma lista hilária de crimes: vida própria é crime, sexo é crime, exercício de humanidade é crime, tudo o que emane da essência humana e que a defina em sua ação é crime. O prazer era proibido em qualquer dimensão - sexual, palatar, visual , etc...- pois seria a porta escancarada que definiria o que se é, fomentaria   gostar do que se é e a descobrir o que se é. Desfrutar das próprias ideias, compartilhá-las, ser visto conversando com alguém.... escrever, eram crimes. Escrever é  definido como crime essencial, pois é aquele no qual contém todos os outros crimes. Pensar é puro crime. O indivíduo com as peculiaridades que o caracterizavam não existia, todos vestiam uniformes, comiam a mesma coisa e eram chamados pelo número.
O contexto era uma Londres lúgubre e em guerra. O mundo politico/econômico estaria divido em três blocos: 1) a Eurásia: antiga Rússia e Europa; 2) a Oceânia: Império britânico, as américas e os Estados unidos; 3) a Lestásia: China, países do sul da china, ilhas do japão, Manchúria, Mongólia e Tibete. Todas paroxítonas com a mesma tonicidade, apesar das diferenças de cultura e raça dentre os países que a compõem, a tentativa de homogeinização é forçada, mas não sem resistência. Não obstante, estão sempre em conflito entre si ao sabor dos ventos ideológicos.
A estrutura de poder era dividia em ministérios: o da verdade, o da paz, o do amor e o da fartura. O ministério da verdade tinha como instrumento a mentira e era responsável pelas notícias, diversões, instrução e artes; o ministério da paz tratava da guerra; o ministério do amor mantinha a lei e ordem à base de tortura e o ministério da fartura cuidava das atividades econômicas e racionava tudo - energia, água, comida etc...- O modo de produção era o socialista (INGSOC) pois há muito o capitalismo havia sido instinto. O lema que regia a vida dos cidadãos era: GUERRA É PAZ; LIBERDADE É ESCRAVIDÃO E IGNORÂNCIA É FORÇA.
Toda a cidade de Londres era vigiada por helicópteros ininterruptamente e as casas, a vida privada dos cidadãos, pela teletela, que além de transmitir os pronunciamentos governamentais o tempo todo, não permitindo a menor possibilidade de introspecção, também funcionava como câmera dando acesso ao que acontecia dentros dos lares.
Os proletários eram amestrados pelas novelas, sim "os proletas", como eram chamados, eram comparados a animais, somente a eles era permitido a prostituição e a indisciplina e como não haviam mecanismos de inserção social para os tais e nem interessava havê-los, eram distraídos/doutrinados por novelas, que lhes davam  as diretrizes sobre o que pensar e como pensar  e essas passavam por um controle rígido do ministério da verdade, setor em que júlia (Suzana Hamilton) trabalhava e essa era a sua tarefa.
Outro mecanismo de doutrinamento era a incitação ao medo e ao ódio. Os perseguido políticos vinham a público através da teletela e confessavam seus supostos crimes e desapareciam, eram vaporizados, como se nunca tivessem existido. Havia, por dia, dois minutos de incitação ao ódio, quando todos paravam suas atividades e se reuniam para xingar os que estavam em guerra contra seu país e os revolucionários que insistiam em apregoar uma outra doutrina e subverter a ordem estabelecida, personificados em Goldstein (John Boswall).
Mas a luta mais ferrenha era contra o orgasmo. Se em Alphaville de Godard o choro era crime punido com morte, na Londres de Orwell o gozo era um crime a ser evitado a qualquer custo. " o partido tratava de aniquilar o impulso sexual, não podendo aniquilá-lo queria ao menos distorcê-lo (....) o ato sexual devia ser encarado como uma operaçãozinha ligeiramente repulsiva, uma espécie de lavagem intestinal" . A liga do corpo com a alma, a manifestação em essência de um elo  que conecta pessoas, que possibilita desenvolvimento de afeto, confiança, ligação e eletriza todos os sentidos era combatido bravamente. Num dos pensamentos de Winston (John Hurt) ele diz: " Quando você faz amor está consumindo energia, depois se sente feliz e não dá a mínima pra coisa nenhuma (...) se você está feliz na própria pele por que se excitar com negócio de grande irmão, planos trienais, dois minutos de ódio e todo o resto da besteirada?"  Numa das fala de O'Brien (Richard Burton) é dito: " Cortamos os vínculos entre (...) homem e mulher, ninguém mais se atreve a confiar na mulher, no filho ou no amigo (...) aboliremos o orgasmo (...) o único amor será o amor ao Grande Irmão (...) não haverá curiosidade nem deleite com o processo da vida". A capacidade de fabricar seu próprio estado de felicidade é cerceado e quando Winston (John Hurt) e Júlia (Suzana Hamilton) finalmente possuíram um ao outro o gozo foi um ato político, um golpe contra o partido e teve um gosto de vitória ideológica.


O instrumento de execução de todas as ordens e diretrizes político/ideológico/comportamentais era a policia do pensamento,  que tinha a função de seguir, capturar e entregar o futuro meliante aos órgãos competentes para ser devidamente punido, expurgado de suas idéias subversivas , sim o indivíduo era julgado antes de cometer a ação, apenas a suposição já era suficiente. (...) " era extremamente perigoso deixar os pensamentos à solta num lugar público qualquer ou na esfera de visão de uma teletela (...) fosse como fosse ostentar uma expressão inadequada no rosto, parecer incrédulo no momento em que uma vitória era anunciada, por exemplo, era em si uma infração passível de castigo, havia inclusive uma palavra para isso em novafala: "rostocrime"  (...) o pior inimigo de uma pessoa era seu sistema nervoso". A policia das idéias  também foi usada no filme Minority Report, 2002  (link). Ninguém que houvesse caído nas mãos da polícia do pensamento/idéias se dava bem no final, "eles eram cadáveres à espera de serem mandados de volta para o túmulo" O segredo era não se destacar,  ser mais um na multidão " nunca deixe de berrar junto com a multidão, só assim você estará em segurança".  
No pacote anti-reflexão, estava o criminterrupção que consistia em estacar todo pensamento perigoso, como que por instinto. O conceito inclui a capacidade de não entender analogias, deixar de perceber erros lógicos, compreender mal os argumentos mais simples e o sentir-se incomodado, entediado por toda sequência de raciocínio, em suma criminterrupção significa  "BURRICE PROTETORA" - termo cunhado no livro.
Em relação à memória ela é apresentada/ personalizada por um incinerador, não é um lugar de preservação, mas de destruição. a manipulação da realidade recebe o nome de duplipensamento
que consiste em abrigar no pensamento duas realidades/crenças contraditórias e acreditar em ambas e ir apagando o que se queira, o passado é tudo aquilo que o partido decide que ele seja e o controle do passado depende do controle da memória, que deve ser curta e " o estado mental predominante deve ser forçosamente o da insanidade controlada"  

Seguindo a linha de raciocínio de George Orwell e analogizando com o presente temos um  mundo globalizado dividido em blocos econômicos, guerras de todos os tipos espalhadas pelo globo terrestre, uma vigilância permanente em nome da segurança, o uso ideológico/político da televisão e realities shows que fomentam a burrice protetora.
O contexto da globalização dividiu o mundo em cinco blocos econômicos,
Na Europa temos a UNIÃO EUROPÉIA (link); nas Américas temos a ALCA     (link) na América do sul o MERCOSUL (link); na América do norte o NAFTA (link); e na Ásia a APEC  (link)ainda em processo de implantação.
Quanto às guerras Orwell dizia que era uma estratégia contínua, não eram pra ser vencidas. Para além dos  conflitos civis internos de países do oriente medio, temos a guerra contra o narcotráfico, a guerra contra o terror, as guerras comerciais, guerras

de inteligências, no sentido político/ estratégico e por aí vai.
A vigilância,  a personificação do controle em nome da segurança, é feita por satélites que voam sobre nossas cabeças e que identificam uma rua  de um endereço que se procure; que o diga o Google/mapas/satélite/earth, para facilitar nossas vidas e para outros fins também.
Porém, o mais interessante nesse contexto de controle  é a televisão, a irmã gêmea da teletela a caixa de pandora da modernidade que cumpre bem a função de adestramento, polimento vazio dos "proletas" e manutenção do "status quo". As novelas são grandes aulões sobre questões sociais como doação de órgãos, homofobia, esclarecimento sobre sindrome de Down, informações sobre tráfico de pessoas, prostituição internacional,  estatuto do idoso e etc.... São os pregadores das orientações e portadores de boas novas, ensinando a "pensar"  e a partir desse espaço de confiança na vida do espectador dita normas de comportamento, manipula construções de vida e de sonhos, cria necessidades que não existiam e fomenta, através do jornalismo, os dois minutos de ódio satanizando  líderes de outra ideologia, que não a vigente, e projetos políticos que não se alinhem com o capitalismo ou a sanha desvairada de poder e usurpação.
 O mesmo veículo "esclarecedor" promove os realities shows distorcendo o conceito de privacidade, construindo uma geração inteira que não dará valor a isso, talvez nem saberá o que significa. Não ter privacidade não é ser invadido é ser famoso/celebridade. Ser visto por milhões escovando os dentes, depilando as axilas, clareando os pêlos do corpo, tomando banho é fashion.  As diretrizes são : não precisa falar corretamente é só fazer-se entender, não use o cérebro, use o corpo. O que se vê nos realities shows é o cotidiano privado de cada um de nós adicionadas  as fofocas e disse-me-disse. Não se discute idéias, se discute pessoas, comportamento.Ter trinta milhões de espectadores dizendo quem será aceito ou rejeitado por atitudes comesinhas é fomentar a mediocridade, criar futuras gerações para serem o que os outros querem que sejam, se assim não for, não leva o prêmio, não tem sucesso.  Criadouro de alienados, babando por dinheiro e se prestando aos piores aviltes para ter fama. Se sujeitar a ficar numa jaula de vidro em pleno shopping é o cúmulo do absurdo, espetáculo de zoológico, aplaudido, ovacionado e cobiçado por muitos jovens


Assombroso é o visonarismo de Orwell, é uma viagem introspectiva de  exercício de poder a partir de tecnologias que se tinha à mão na época, diferente de Nikola Tesla (link) que se aventava a fazer proposições de invenções que ainda não existiam, Orwel faz a viagem inversa, mergulha dentro da sordidez humana, para de lá, pensar as possibilidades de serviço espúrio a que se podia submeter as novas tecnologias existentes.Uma viagem pelas nossas sedes e fomes: de poder, de controle, de usurpação e de prepotência. É como se ele tentasse responder à pergunta :  e se "isso" cair em mãos erradas? Orwell quando fala acerca do mundo que estava sendo construído diz, através da personagem O'Brien (Richard Burton) "está começando a ver que tipo de mundo estamos criando?(...)um mundo de medo, traição e tormento, um mundo em que um pisoteia o outro, um mundo que se torna mais e não menos cruel à medida que evolui (...) no nosso mundo as únicas emoções serão o medo, a ira, o triunfo e a autocomiseração (...) sempre haverá a embriaguez pelo poder (...) se você quer formar a imagem do futuro imagine uma bota pisoteando um rosto humano para sempre" . Um rosto/pessoa pisoteados não tem reação, não se expressa, não tem identidade, está humilhado e inerte, sem autoestima, sem forças.
No filme, as cores, as tomadas são cinzentas, escuras, esfumaçadas, gente suada, abatida, cansada e feia, sugerindo sujeira, mal cheiro e desconforto. O único lugar colorido, com céu azul, com  grama verdejante e as cores da natureza é o sonho de Winston (John Hurt) que também não está protegido dos tentáculos ideologicos do grande irmão e pode ser invadido.
Longe de se pensar que a obra 1984 é uma ode ao pessimismo e  mau agouro. Quando Winston (john Hurt) inicia seus escritos - crime essencial -  diz: "ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós. A um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito" . Na verdade uma ode à esperança. George Orwell escreveu e Michael Radford  deu vida a uma obra de alerta na esperança de que  tudo fosse diferente do que os prognósticos indicavam.
Em suma, mais de meio século depois do livro publicado, quase trinta anos depois da produção filmica o cerne das questões levantadas por Orwell são fatuais. Mas nem tudo está perdido, ainda somos capitalistas, a polícia do pensamento é incompetente e ainda podemos gozar no final. Mas mesmo assim, não se esqueça....SORRIA! SORRIA SEMPRE POIS VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO :)









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